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Jaqueline Goes: protagonismo abre caminhos para mais mulheres na ciência

Por Elsevier Brasil | 25 de julho de 2023

Um problema que vejo no Brasil não é a falta de mulheres cientistas, mas onde elas conseguem chegar. As posições de poder, os cargos de lideranças permanecem ocupados por homens. Proporcionalmente às mulheres é muito desigual.

Jaqueline Goes de Jesus Biomédica e Pesquisadora

A biomédica brasileira que se destacou no sequenciamento genético da Covid-19é a entrevistada do Dia da Mulher Latino-Americana e Caribenha, 25 de julho Jaqueline Goes de Jesus, biomédica e pesquisadora, nascida na Bahia, 33 anos, tornou-se figura de destaque no cenário científico e ganhou os holofotes da imprensa mundial após os resultados de seu trabalho na equipe responsável pela sequenciação do primeiro genoma do vírus SARS-CoV-2 no Brasil - apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no país.

Em reconhecimento às suas conquistas e influência no campo científico, Jaqueline foi uma das seis cientistas, em 2021, que receberam uma boneca Barbie inspirada em suas realizações, ao lado de outras notáveis profissionais, como a britânica Sarah Gilbert, que liderou a criação da vacina Oxford-AstraZeneca. Além disso, Jaqueline foi homenageada pela Turma da Mônica no Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. Em 2022, a pesquisadora conquistou nova marca compondo a lista das ‘20 Mulheres de Sucesso do Brasil’ da revista Forbes.

Atualmente, ela é professora adjunta do curso de Biomedicina e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas e Inovação da EBMSP. Co-coordena a REDE SEQV BR, iniciativa de estudo colaborativo de vigilância genômica no Brasil, onde desenvolve pesquisas na área de arboviroses e outros patógenos emergentes. É guia da Equipe Halo, projeto da Iniciativa Verificado da ONU de divulgação científica e combate à desinformação sobre a COVID-19 em redes sociais. Também é uma das Vaccines Luminaries dentro da Campanha G7- Global Vaccine Confidence e contribui para a iniciativa Vaccines & US do Museu Smithsonian. Graduada em Biomedicina pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), mestra em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa (PgBSMI) pelo Instituto de Pesquisas Gonçalo Moniz - Fundação Oswaldo Cruz (IGMFIOCRUZ) e Doutora em Patologia Humana pela Universidade Federal da Bahia em ampla associação com o IGM-FIOCRUZ.

Hoje, 25 de julho, Dia da Mulher Latino-Americana e Caribenha, em entrevista especial ao blog Elsevier Connect, Jaqueline Goes analisa questões importantes sobre a mulher na ciência, desafios e conquistas, e, principalmente, como ela tem aberto portas para outras colegas a partir de seu protagonismo.

Boa leitura!

Elsevier: Impossível começar essa entrevista sem citar o marco em sua carreira e na ciência brasileira como um todo, no período da pandemia de Covid-19. Mas, antes disso,  gostaríamos de saber: o que  a levou para a pesquisa genética?

Jaqueline Goes: Acredito que dois principais pontos na minha carreira foram determinantes para me desenvolver na área de sequenciamento genético. O primeiro foi o projeto Zibra, que aconteceu em 2016, o primeiro contato que tive com essa tecnologia de sequenciamento nanoporos. Viajamos num micro-ônibus pelo Nordeste do Brasil, fazendo o sequenciamento do vírus Zika durante a pesquisa de campo. Nisso, incluímos um outro vírus, o Chikungunya, que à época também estava em epidemia. Nessa viagem, fui treinada por uma equipe da Universidade de Birmingham, junto a uma outra equipe de São Paulo, e ali aprendi a fazer o sequenciamento genético utilizando a tecnologia de nanoporos.

O segundo ponto foi o desdobramento dessa fase itinerante do projeto Zibra, quando solicitei uma bolsa para a Capes para fazer doutorado e fui aceita pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, para trabalhar com o grupo que havia nos treinado no Brasil.  Foi um momento único, quando atuei com grandes nomes da ciência. Ao longo de  seis meses, fiz muitos sequenciamentos genéticos padronizando alguns protocolos para o vírus da Zika, que depois resultaram noutros protocolos mais efetivos. Também tive a oportunidade de trabalhar com protocolos de sequenciamento direto do RNA humano, além de protocolos para sequenciamento direto do RNA do HIV.

Foi um período muito bom, que me fez retornar ao Brasil sendo referência no tema, convidada a ministrar aulas na área de tecnologia. Hoje, muitos pesquisadores usam a tecnologia que eu desenvolvi em parceria com um grupo de pesquisa da Fiocruz, onde eu trabalhava. Com isso, expandimos a metodologia pelo Brasil, trabalhando com outras frentes de sequenciamento, como a do vírus da febre amarela, da dengue e até de outros vírus que não são tão conhecidos, mas que nos interessavam. O objetivo era que os protocolos estivessem prontos para uma possível epidemia.

Elsevier: Quais foram os principais desafios enfrentados durante o processo de sequenciação do genoma do vírus da Covid-19?

Jaqueline Goes: Acredito que o principal desafio encontrado foi trabalhar com um vírus que nunca havíamos sequenciado antes. Por se tratar de um vírus novo, que começava a ser detectado em circulação nas comunidades humanas, não havia referências. O sequenciamento que nós fizemos foi o primeiro do vírus no Brasil.

Sabíamos como usar a técnica, mas não sabíamos o que iríamos encontrar. E foi justamente isso que, de certa forma, trouxe o resultado em 48 horas. Tivemos que repetir o procedimento, uma vez que nas primeiras 24 horas obtivemos uma porção do genoma com 76% de cobertura, ainda baixa em nossa avaliação. Aperfeiçoamos o sequenciamento, e no segundo momento alcançamos 85% de cobertura, considerada parcial, conforme queríamos. Vale frisar que foi um trabalho em conjunto com pesquisadores do nosso time e também do Reino Unido. Não fizemos nada sozinhos.

Sobre o prazo de 48 horas tão noticiado como recorde, não é bem assim. Estamos acostumados a alcançar resultados em menos tempo; o diferencial foi termos buscado melhorar o alcance da cobertura, já que a primeira análise já poderia ter sido utilizada.

Elsevier: Qual é o sentimento por ter feito parte da equipe responsável por essa conquista?

Jaqueline Goes: Costumo dizer que, quando isso aconteceu, meu objetivo principal era dar uma resposta rápida para uma questão de saúde pública, como uma das prerrogativas do nosso sistema de saúde, uma vez que a pesquisa também faz parte do SUS (Sistema Único de Saúde). Mas jamais imaginei que isso tomaria proporções gigantescas como tomou, acolhendo a sociedade civil, a sociedade científica e sendo um trabalho reconhecido no mundo todo. Não posso deixar de dizer que fiquei feliz, mas mais pelo dever cumprido do que por orgulho de ter feito algo inovador, pois a técnica usada já faz parte do nosso dia-a-dia.

Elsevier: Para esse trabalho de pesquisa, quais plataformas científicas foram utilizadas, alguma em específico da Elsevier contribuiu para as suas pesquisas e ainda contribui nos dias atuais?

Jaqueline Goes: Em relação às plataformas científicas utilizadas, a Elsevier teve protagonismo durante a pandemia de Covid-19 ao liberar o acesso a diversas ferramentas de pesquisa. Os artigos liberados gratuitamente contribuíram muito com aquele momento da ciência e da saúde, pois puderam ser utilizados de forma ampla e isso foi fundamental.

À época, acredito que a plataforma que eu mais usei, sem dúvida, foi a ScienceDirect, porque buscávamos diariamente informações novas ou até antigas sobre coronavírus, e não só o SARS-CoV-2, mas também coronavírus que já estavam sendo estudados. Tudo isso para que pudéssemos tentar compreender quais eram as semelhanças dessa biologia viral. Para mim e para minha equipe, o ScienceDirect foi imprescindível para os resultados alcançados e com uma repercussão muito, muito significativa dentro da ciência de modo geral.

Elsevier: Como foi receber prêmios e homenagens por seu trabalho na luta contra o coronavírus e de que forma isso afetou sua carreira e sua motivação pessoal?

Jaqueline Goes: Foi muito estranho começar a receber prêmios na minha carreira por conta do sequenciamento de um vírus, que era uma coisa que eu já fazia há bastante tempo, que eu gosto de fazer. Então demorei muito a entender que a minha relevância dentro desse contexto da ciência não era exclusivamente pelo fato científico. Mas, sim, o fato de ser uma mulher negra, nordestina e jovem que estava ali despontando como uma líder dentro da ciência, como uma heroína num campo em que não se espera encontrar pessoas negras. Foi isso que senti e precisei ressignificar esse sentimento, justamente porque eu quebro esses paradigmas, esses estereótipos que o Brasil tem de forma muito forte.

Houve um momento em que quis me afastar da mídia, das projeções, mas depois entendi que o meu papel, ali, era importante para além do universo da ciência. Hoje tenho isso muito claro. Continuo dedicada às pesquisas em desenvolvimento, claro, mas sem deixar de lado minha presença nas redes sociais, nas mídias em geral, em qualquer espaço que eu possa ocupar. Pois isso mostra às outras meninas, negras ou não, e meninos também, que todos podem ocupar esse espaço. Entendi meu papel de representatividade, que é uma missão. Hoje utilizo as homenagens e os prêmios que recebo como uma carta de apresentação que pode abrir caminhos para mais pessoas.

Um problema que vejo no Brasil não é a falta de mulheres cientistas, mas onde elas conseguem chegar. As posições de poder, os cargos de lideranças permanecem ocupados por homens. Proporcionalmente às mulheres é muito desigual. Meu objetivo é trazer luz para esse movimento, também numa perspectiva racial, para que a gente consiga entender que se para uma mulher branca isso já é difícil, é triplamente difícil para a mulher negra, porque ela ainda está tentando alcançar as primeiras etapas da pós-graduação e ser reconhecida por isso.

Elsevier: Sua fala casa muito bem com nosso próximo tópico. Hoje celebramos o 25 de julho, Dia da Mulher Latino-Americana e Caribenha. Qual relato você pode nos deixar sobre essa data entendendo os desafios da carreira, de gênero, de sua região natal, mas, também, as conquistas e avanços?

Jaqueline Goes: O corpo preto, dentro da nossa sociedade, não é lido como um corpo intelectualizado. Somos lidas como mulheres para serviços - secretárias, funcionárias de outras pessoas [brancas], profissionais de serviços gerais. Às vezes chego em locais onde sou a figura principal do evento, a palestrante, e mesmo assim sou barrada na portaria porque as pessoas não me conhecem. E ao fazerem uma leitura da minha posição social, mesmo assim não conseguem me enxergar como uma mulher em posição de destaque. Então, em muitos momentos deixo as pessoas falarem primeiro, questionarem, porque o embate não ajuda.

Já sabendo desse racismo estrutural que a gente vivencia todos os dias, espero essas “leituras sociais” e aí entrego minha apresentação. Quando essas pessoas descobrem quem eu sou, elas se surpreendem e pedem desculpas, pedem perdão. Pode parecer engraçado no primeiro momento, mas numa análise geral, isso jamais aconteceria com uma pessoa branca. Essa acomodação social para as pessoas negras ainda levará muito tempo para acontecer, mas não é por isso que deixaremos de lutar.

Em relação ao estímulo às mulheres na ciência, acho que o Brasil não está muito atrás de outros países. Fora daqui, há um incentivo maior à pesquisa de um modo geral, independente se para homens ou mulheres. Percebo que há uma mudança de ações afirmativas nos Estados Unidos e no Canadá, e, na Inglaterra, já existem editais com ações afirmativas muito, muito fortes, muito bem representadas, e isso facilita bastante o ingresso e a permanência de mulheres na ciência.

Hoje é muito mais fácil para uma mulher investir na carreira no exterior, onde ela conta com ações afirmativas e um aporte científico, acadêmico, financeiro e estrutural bem melhor do que no Brasil. Isso facilita o trabalho da mulher, como facilita o de qualquer outro pesquisador.

Elsevier: Durante toda a entrevista, você mostrou que é possível vencer barreiras e ter protagonismo na vida pessoal e profissional. Quais contribuições pode deixar para as meninas e mulheres que estão prestes a se tornarem cientistas no Brasil?

Jaqueline Goes: Todas as barreiras que enfrentei foram vencidas com muito sofrimento e eu sou uma pessoa que não romantiza o sofrimento. As pessoas costumam dizer que o sofrimento ensina, que o sofrimento nos torna pessoas mais guerreiras, mais fortes e resilientes. Eu não acredito muito nessa máxima, acho que o sofrimento torna as pessoas traumatizadas. E a gente sobrevive e é resiliente porque a gente não tem alternativa.

Eu, como coordenadora, tento não trazer sofrimento para as minhas alunas, seja qual for o background social delas, a cor da pele. Tenho também a prerrogativa de trazer mais mulheres negras e do universo LGBTQIAPN+ para a ciência. As pessoas na ciência não precisam sofrer para aprender. Temos exemplos claros em países europeus e norte-americanos de pessoas consideradas como minoria que ganharam prêmios Nobel.

A contribuição que posso deixar é um convite para que parem de romantizar o sofrimento. Por mais talento que uma pessoa tenha, se ele não encontrar uma oportunidade ficará engavetado, perdido. Quero cada vez mais abrir caminhos e oportunidades para que meninas e mulheres coloquem seus talentos em prática, seja na ciência ou em outro lugar. Por isso, se a oportunidade não chegar, corra atrás dela, pois sem ela a gente não consegue ultrapassar essas barreiras.